Elsimar Coutinho

Dr. Elsimar Coutinho, baiano bom de briga

“Eu escolhi ser polêmico”. Elsimar Coutinho, 79 anos (completados em 18 de maio último), parece estar sempre pronto a atender a imprensa. Ele admite que a relação com os jornalistas teve papel fundamental em sua trajetória. Foi na TV, nas revistas e nos jornais que o médico baiano, natural de Pojuca, a 70 quilômetros da capital, fez trincheira para defender ideias ousadas, como a utilidade do controle da natalidade no combate à violência e a inutilidade da menstruação. Comprou inúmeras brigas ao longo da vida, inclusive com o cardeal dom lucas Moreira Neves, mas afirma não se arrepender de nenhuma. Atualmente, seus fronts são a distribuição comercial de um anticoncepcional masculino, o Gossipol, emperrada no Ministério da Saúde, ea defesa da reposição hormonal para homens e mulheres. “O primeiro embate, já venci, pois a comunidade médica internacional reconheceu que a reposição de testosterona não provoca câncer de próstata”, diz com indisfarçável orgulho.

No amplo escritório que mantém dentro do prédio do Centro de Pesquisa e Assistência em Reprodução Humana (Ceparh), no bairro da Federação, em Salvador, chamam a atenção a desorganização apenas aparente – da grande mesa, repleta de pastas e papéis, e o número de retratos de familiares na estante, especialmente filhos e netos. Já escreveu diversos livros, o mais recente relaciona a atuação do Ceparh na Bahia à diminuição da criminal idade no Estado entre 1984 e 2004. Atendendo em vários consultórios (São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Belo Horizonte, além de Salvador), o especialista em reprodução humana faz questão de mostrar a posição que seu nome ocupa em um guia oficial no qual médicos de todo o País indicam os melhores profissionais de cada área. “Sou polêmico, não é? Mas apareço no primeiro lugar dessa lista”.

Ser considerado polêmico O desagrada? Como o senhor lida com isso? Acho que escolhi ser polêmico. A polêmica, no meu entender, conduz à luz, o conformismo nunca me atraiu. Sou do tempo em que prevalecia o magister dixit, que significa “foi o mestre que disse”. Então, você tinha de acatar. Eu fui aluno e fui professor. E fui professor cedo, muito cedo, para ganhar dinheiro. Meu pai tinha sete filhos, era professor da faculdade de medicina, ganhava salário, tinha uma clínica modesta na Rua Chile. De modo que comecei a trabalhar aos 14 anos, entregando remédios, como visitador médico. Botei as primeiras calças compridas para isso. Como era obrigado a ler as bulas dos remédios, desenvolvi uma percepção prematura do conhecimento médico. No ano seguinte, fui ser laboratorista no serviço de águas e esgotos. Aos 15 anos, conhecia a cidade do Salvador e seu sistema de tratamento de água. Aprendi a me defender com argumentos que não estão ao alcance de todos. A polêmica se tornou uma coisa adulta à medida que me envolvi em questões sociais e fui penetrando numa área da medicina totalmente nova, que sofria resistência por causa da ignorância. Tive que bater de frente com a religião, que é baseada no magister dixit, no que o padre falou. Não podia aceitar aquilo.

Se arrepende das brigas que comprou? Olhe, não me arrependo de nada, não há nada que eu possa olhar para trás hoje e dizer: “Me arrependo de ter feito isso”. Não me arrependo, por exemplo, de ter ficado na Bahia quando tudo me empurrava para fora. Minha primeira mulher é francesa, eu tinha nacionalidade garantida, havia feito uma pós na França, podia fazer minha medicina lá, fazer pesquisas com muito dinheiro. Mas decidi ficar e trazer o dinheiro para cá. Fiz pesquisas como nenhum contemporâneo conseguiu fazer. Conseguia recursos da Fundação Rockfeller, da Fundação Ford, da Organização Mundial de Saúde, isso ao longo de mais de dez anos. E trazendo esse dinheiro para cá, logicamente, tinha de brigar por ele.

As pessoas reagem com menos virulência às suas ideias hoje? A virulência vem mais das ideologias. O ideólogo acha que todos têm de aceitar o que ele pensa. Eu não sou ideólogo. Minhas propostas são baseadas em evidências, são científicas. Quando defendo a promoção do planejamento familiar, me baseio na lógica. Em relação à supressão da menstruação, não há nenhuma dúvida em meu espírito. A menstruação é uma consequência da civilização. É o tal negócio: se as pessoas acham que estou errado, provem.

O senhor acaba de lançar um livro que relaciona a redução da violência em Salvador, entre 1984 e 2004, à atuação do Ceparh. Pode falar um pouco sobre isso? O que está nesse livro é absolutamente indiscutível, mostra simplesmente o resultado de pesquisas que foram feitas no espaço de 20 anos em que estamos atuando. Nesse período, ajudamos a evitar cerca de três milhões de gravidezes indesejadas. E, no momento que você faz isso, você está evitando pelo menos 30% dos abortos. Então, salvamos muitas vidas. Também impedimos de nascer crianças que, se fossem abandonadas à própria sorte, uma parte delas, enveredariam pelo crime. Vinte anos depois que começamos, em 1984, a Unesco publicou um estudo sobre a violência em todas as cidades brasileiras. Quando começamos, Salvador era a sexta capital mais violenta do País. Naquela época, eu tinha oposição da esquerda e da direita, e quem batia mais era a esquerda. Eu ajudava a fazer controle de natalidade na China, comecei a desenvolver o anticoncepcional masculino Gossipol lá. Era um herói na China e um bandido no Brasil. Mas encontrei também admiradores, gente que me levou para a TV, onde eu dava audiência e me defendia daquilo que me acusavam. Este estudo,da Unesco,quevai até 2004, mostra que Salvador saiu do 6º lugar efoi para o 22º lugar ao longo dos 20 anos de atuação do Ceparh. A Bahia saiu do 9º e foi para o 19º.

Como foi feito o controle de natalidade? Chamo de controle voluntário da natalidade. Não é imposto pela Igreja, pelo governo, pelas ideologias ou pelo interesse econômico. As pessoas nos procuram quando desejam evitarfilhos e quando desejam terfilhos. E é tudo muito transparente, não há razões para esconder nada, estou sempre divulgando o que faço. Aliás, só sobrevivi graças à TV, que abriu as portas para que eu pudesse me defender dos boatos de que fazia pesquisas secretas. Que mentira! Minhas pesquisas sempre foram públicas. Como não se tornar um homem polêmico? Quando descobri a injeção de medroxiprogesterona, que prolongava o efeito da progesterona, aquilo foi um impacto enorme. Recebi aqui em Salvador, há 45 anos, a revista Time-life, que veio fazer uma matéria comigo. Saí na revista, minha cara numa página inteira, virei uma figura conhecida no exterior, comecei a ser convidado para tudo que era congresso. Isso gerou muita inveja, pensei até em ir embora daqui. Eu só queria ser pesquisador, meu sonho era me aproximar daqueles que faziam grandes descobertas. E consegui. Me tornei próximo de meia dúzia de prêmios Nobel, de chamar de você, de almoçar com eles. Nessa época, quando A TARDE publicou matéria sobre o anticoncepcional injetável, eu fui processado pelo Conselho Regional de Medicina, acusado de estar infligindo o Código de Ética. E havia um artigo que permitia que eu fosse processado, que dizia que um médico não podia ensinar suas pacientes a evitar gravidez. Eu não tinha de partir para a briga? Se fosse punido, sairia do Brasil, iria procurar um país onde pudesse ensinar as mulheres a evitar filhos. Mas, com esse processo, mudaram o Código de Ética e tiraram esse e outro artigos que feriam a ética.

Como o CEPARH é mantido? O prédio foi doação de um rico empresário holandês. Já a estrutura é mantida por mim e pela contribuição de alguns poucos colaboradores. Nós trabalhamos aqui atrás de um ideal, que é melhorar a vida dos baianos. Atendemos gratuitamente cerca de 120 pessoas por dia.

Como anda o processo de liberação do anticoncepcional masculino, criado pelo senhor, para comercialização? O Ministério da Saúde não aprovou a comercialização e não me deu satisfação. Eles não devem satisfação a ninguém, fazem o que querem. Nem o laboratório que estava trabalhando no medicamento me deu qualquer satisfação.

Qual a relação entre esse anticoncepcional e a prevenção ao HIV? A ideia de que ele reduz o contágio é que suprime os espermatozoides, e são eles que carregam o vírus. O indivíduo que toma anticoncepcional masculino não tem espermatozoides, ele zera, entendeu? Só tem um sêmen ralo. Mas acho que tem um bocado de elementos contrários à aprovação desse medicamento, e um dos mais importantesé o problema da disponibilidade desse anticoncepcional para qualquer pessoa. O laboratório que for investir nisso sabe que, se tiver sucesso, vão aparecer dez outros fazendo a mesma coisa, porque o Gossipol é extraído da semente de algodão, que é usada como alimento para gado.

Existe algo semelhante a esse anticoncepcional em outros países? Não, não existe. Não tem nada semelhante. Para homem, você só tem vasedomia ou camisinha. E a camisinha é condenada pela Igreja. Você acha que vou ficar calado diante disso? Parto para a briga.

O senhor patenteou algum desses medicamentos? No Brasil, é proibido ao médico patentear medicamentos. Se quiser patentear, ele tem de ir para outro país. Todas as patentes que eu tenho foram registrados na Europa. Hoje, no Brasil, as mulheres aderem à supressão da menstruação, proposta há anos pelo senhor? Sim. E as mulheres que experimentam não menstruar não voltam a menstruar. A menstruação é uma questão de civilidade, de civilização, é incompatível com a vida no meio natural. Nenhum animal sangra durante vários dias, pois seria abatido pelos outros.

Os anticoncepcionais orais tradicionais parecem respeitar esse ciclo menstrual? Já briguei muito por causa disso quando ele entrou no mercado. Mas havia uma justificativa boa para fazer uma pílula que acompanhasse o que a civilização criou. Ninguém acreditava que uma pílula pudesse evitar a gravidez, era uma coisa assim inconcebível. Como era que se provava então que a pílula era eficiente? Fazendo a mulher menstruar. Se ela menstruava, é lógico que não estava grávida. Por isso, a indústria defendia a aplicação da pílula durante 21 dias. O sangramento era a prova da eficiência do medicamento. Naquela época, não havia nenhum teste seguro de gravidez, muito menos ultrassonografia. Nem se sonhava em desenvolver a ultrassonografia. Nós usávamos um teste chamado Galli-Mainini com sapos. Eu comprava centenas de sapos por semana. Você injetava a urina da mulher no sapo e, se ele ejaculasse, a gente via os espermatozoides na urina dele, a mulher estava grávida.

E essa é uma ideia que o senhor defendeu fora do Brasil também, não foi? Sim, defendo a supressão da ovulação e da menstruação há 40 anos. Briguei tanto que escrevi um livro, Menstruação, a sangria inútil, que fez grande sucesso, já está na oitava edição, e foi publicado nos EUA pela Oxford University Press (sou o único médico brasileiro editado por ela). Nos EUA, a injeção de medroxiprogesterona, que eu descobri, ainda vende 300 milhões de dólares por ano. Se eu tivesse tido o direito de patentear, teria ficado muito rico nem sei se seria bom para mim, mas hoje seria um bilionário. No ano passado, a revista Time fez uma enquete entre os médicos americanos para saber quais foram os dez maiores progressos da medicina mundial, e a supressão da menstruação foi eleito o quinto maior progresso da medicina mundial, uma coisa que eu defendo sozinho há 40 anos.

O uso prolongado de anticoncepcionais pode acarretar danos à saúde? Se a mulher usa a píluta e para para sangrar todo mês, qual é a diferença? Ela acha que uma semana vai salvar ela de um câncer ou de alguma outra coisa? Não faz sentido e não tem nenhuma lógica.

Há alguma polêmica mais recente? A polêmica mais recente é a reposição hormonal para homens e mulheres. A primeira, já venci, pois a comunidade médica reconheceu que a reposição de testosterona não causa câncer de próstata. Vou ganhar a segunda também. Eu ganho todas as brigas. Tranquilamente.